Crítica: “Ainda Estou Aqui” (2024)
- Igor Biagioni Rodrigues
- 1 de mar.
- 4 min de leitura
Atualizado: 2 de mar.
As memórias e as marcas da ditadura.
Por Igor Biagioni Rodrigues.

O filme "Ainda Estou Aqui", dirigido por Walter Salles, com roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega, é uma adaptação do excelente livro homônimo escrito pelo jornalista e escritor Marcelo Rubens Paiva, publicado em 2015. Marcelo é filho de Rubens Beyrodt Paiva, que foi deputado federal pelo PTB de 1963 a 1964. Durante a ditadura, teve seu mandato cassado, foi exilado e, após retornar ao Brasil, foi preso e desapareceu (eufemismo) em janeiro de 1971. Sendo um drama histórico, o longa aborda esses acontecimentos e as consequências desses eventos para a família Paiva, trazendo um recorte de um período extremamente doloroso da história brasileira.
O filme começa de maneira muito inteligente, mostrando o dia a dia dessa família, mas, principalmente, nos fazendo apegar a Rubens, muito bem interpretado por Selton Mello. O ator consegue trazer uma ótima representação de um homem rico, politizado, contrário a um governo autoritário, e que ajudava famílias de perseguidos passando recados a familiares e amigos, mas também entregando a faceta de um pai de família extremamente amoroso.
O roteiro é calmo, nos contextualiza historicamente no período da ditadura militar e nos apresenta essa família que vivia no que parecia um refúgio desses tempos difíceis de maneira relativamente tranquila e lenta, até que tudo muda. Em um dia normal de janeiro de 1971, Rubens é levado pela inteligência militar e nunca mais volta. A partir daí, o filme toma outro rumo: a fotografia assume tons mais escuros, a trilha sonora acompanha essa mudança e, além disso, o protagonismo é passado para a esposa de Rubens, Eunice Paiva, interpretada de maneira excelente por Fernanda Torres.
A atuação de Fernanda Torres é impressionante, cheia de camadas e sutilezas. A atriz consegue demonstrar mais de uma emoção ao mesmo tempo. Por exemplo, na sequência em que os militares invadem a casa dos Paiva, Torres consegue expressar medo, ao mesmo tempo que demonstra normalidade perante os policiais, oferecendo-lhes café, e para os próprios filhos, fingindo que está tudo bem. Tudo isso sem dizer uma palavra, apenas por meio de suas expressões. Outro exemplo é na já famosa sequência da foto, em que há raiva, mas, ao mesmo tempo, ela e sua família devem sorrir.

No próprio livro, Marcelo Rubens Paiva diz que sua mãe era uma pessoa muito contida e firme (o longa deixa isso bem claro desde o começo, por exemplo, quando Marcelo quer adotar um cachorro e vai falar com o pai, e não com a mãe). E é essa sensação que sentimos ao ver a atuação de Fernanda Torres. Perante todas as dificuldades, na prisão e fora dela, ela se manteve forte e presente. Diante dos filhos, optou por deixar que eles percebessem, no seu próprio tempo, que o pai deles não voltaria, mas, mesmo assim, estava com eles (como na cena em que ela entrega o dente para Babiu), mostrando, como quem diz, que “apesar de tudo, ainda estou aqui”.
São um misto de emoções transmitidas apenas com um olhar. E, por falar em olhar, o que dizer de Fernanda Montenegro? Apesar de ter sido dito que sua participação não passa de um cameo, que não acrescenta muito à narrativa além daquilo que já havia sido demonstrado — ou seja, a ideia de que, mesmo com tudo o que aconteceu, ela e sua família ainda estavam ali — e para ser uma forma de ter mãe e filha interpretando a mesma personagem/pessoa, sua cena é extraordinária. A pequena participação dessa atriz lendária da dramaturgia brasileira demonstra o porquê de Fernanda Montenegro ser uma força da natureza. Ela diz muito, sem dizer nada.

Em relação ao design de produção, o longa não deixa a desejar. Nos insere de maneira muito acertada na década de 1970, e a trilha sonora não fica atrás. Porém, o maior destaque vai para a fotografia, que, após a prisão de Rubens Paiva, assume um tom mais sombrio e melancólico, refletindo diretamente o tom que o filme propõe. Gosto de ressaltar a importância da casa na narrativa também, que funciona como uma espécie de personagem da história e, quando é esvaziada, nos deixa com uma sensação ruim, uma certa tristeza.
Sim, o filme não é perfeito, principalmente por causa de sua terceira parte (a que se passa em 1996), que acontece de maneira rápida e sem muita emoção, servindo como uma compensação dramática que se salva graças à interpretação de Fernanda Montenegro. Mas, independentemente disso e do sucesso que o filme tem feito em festivais (sim, isso é importante, mas é um assunto para outra hora), a maior importância desse filme está na mensagem que ele traz para nós, brasileiros.
A ditadura foi uma época terrível para o país. No entanto, estamos vivendo em um momento em que as pessoas estão se esquecendo disso ou até mesmo, no mais puro ato de ignorância, duvidando da História. Entre as inúmeras atrocidades que ocorreram, milhares de pessoas desapareceram — e entendam aqui o termo “desaparecer” como um enorme eufemismo. Ao contar a história da família Paiva, o longa dá um rosto a essas pessoas e famílias que tanto sofreram por causa de um governo autoritário e sangrento. Para que possamos nos identificar com aqueles personagens e sentir, ou ao menos imaginar, uma fração da dor dessas pessoas.
É imprescindível que, em tempos como este, em que no Brasil e no mundo o extremismo cresce absurdamente, nós, como povo, jamais nos esqueçamos dos horrores infligidos a este país e à sua gente. Lembrar para jamais repetir! Porque quem viveu a história na pele sabe que nem mesmo uma doença tira essa memória e essa dor.
Para quem só se importa com números:
Nota- 9/10.
Ficha Técnica:
Título original: Ainda Estou Aqui
Países de origem: Brasil
Roteiristas: Murilo Hauser, Heitor Lorega, baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva
Direção: Walter Salles
Classificação: 14 anos
Duração: 136 min.
Elenco:
Fernanda Torres como Eunice Paiva (jovem/adulta)
Fernanda Montenegro como Eunice Paiva (idosa)
Selton Mello como Rubens Paiva
Valentina Herszage como Vera Sílvia Facciolla Paiva (Veroca) (jovem)
Maria Manoella como Vera Sílvia Facciolla Paiva (Veroca) (adulta)
Luiza Kosovski como Maria Eliana Facciolla Paiva (Eliana) (jovem)
Marjorie Estiano como Maria Eliana Facciolla Paiva (Eliana) (adulta)
Bárbara Luz como Ana Lúcia Facciolla Paiva (Nalu) (jovem)
Olívia Torres como Ana Lúcia Facciolla Paiva (Nalu) (adulta)
Guilherme Silveira como Marcelo Rubens Paiva (jovem)
Antonio Saboia como Marcelo Rubens Paiva (adulto)
Dan Stulbach como Baby Bocayuva
Thelmo Fernandes como Lino Machado
Muito bom, Igor! A temática do filme nos leva a relembrar que regimes autoritários não devem voltar. Parabéns!
Filmes fundamtados na história, a partir de experiências vividas, apesar do olhar de quem conta sempre trazer um lado, no caso, de quem sofreu a ditadura, não do ditador, nos ajuda a entender porque reações contra Fernanda Torres. De fato, o olhar crítico de Igor nos incentiva a assistir o filme com olhar igualmente crítico e a buscar outras fontes daquele período doloroso da história que não pode mais voltar. Côn. Bino
Parabéns Igor! Excelente trabalho!
Parabéns Igor Biagioni Rodrigues! Ao vivo foi tudo de bom!!