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Crítica: “A Paixão de Cristo” (2004)

  • Foto do escritor: desenhandorecordat
    desenhandorecordat
  • 18 de abr.
  • 6 min de leitura

Pai, perdoe o Mel Gibson. Ele não sabe o que faz...

Por Igor e Iuri Biagioni Rodrigues.

Crítica A Paixão de Cristo
"A Paixão de Cristo"-Distribuição/ 20th Century Fox Brasil

As passagens que narram a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, presentes nos Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, são muito conhecidas e já foram adaptadas diversas vezes pela literatura, teatro, quadrinhos e cinema. Uma das versões mais conhecidas desses eventos está no famoso e polêmico filme "A Paixão de Cristo", dirigido por Mel Gibson e escrito por ele em parceria com Benedict Fitzgerald. O longa foi lançado no início da Quaresma, em fevereiro de 2004.


Um fato bastante relevante para compreender "A Paixão de Cristo" é saber que o longa não é baseado apenas no cânone bíblico. A inspiração de Mel Gibson também veio de Anna Catharina Emmerich (1774-1824), uma freira agostiniana, filha de camponeses, que nasceu e viveu na Alemanha. Ela alegou ter tido visões dos eventos que envolvem o julgamento, condenação e crucificação de Jesus. Seus relatos são conhecidos pela riqueza de detalhes sobre o sofrimento de Cristo. Emmerich recebeu visitas e foi entrevistada pelo poeta e romancista Clemens Wenzeslaus Brentano de La Roche, mais conhecido como Clemens Brentano. O escritor reuniu anotações sobre as visões da freira e publicou o livro "A Dolorosa Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo", em 1833. Esse material foi utilizado por Gibson como base para produzir o seu filme. Uma curiosidade é que Anna Catharina Emmerich foi beatificada pelo Papa João Paulo II em outubro de 2004, mesmo ano do lançamento do filme, embora sua beatificação esteja mais relacionada à sua vida de forte fé, compaixão, caridade, piedade e aos estigmas que recebeu, do que às supostas visões.


Além disso, o diretor comentou em entrevistas que a ideia para a produção do filme vinha sendo trabalhada havia 12 anos, desde que teve uma intensa experiência pessoal religiosa, e que seu trabalho deve ser visto como uma interpretação a respeito de um fato religioso. Aqui, vale lembrar que Gibson é um católico tradicionalista e apoiador convicto do Partido Republicano estadunidense, possuindo, portanto, tendências mais conservadoras.

Crítica A Paixão de Cristo
Cena de "A Paixão de Cristo" — Foto: Divulgação

A Paixão de Cristo é um filme com uma premissa interessante, boa maquiagem, trilha sonora impactante e boas ideias, como a utilização de idiomas antigos como aramaico, hebraico (em menor escala) e latim como línguas oficiais da produção (Gibson só frequenta missas celebradas em latim e acredita que o rito fala por si só, sendo mais eficiente do que a linguagem. Deste modo, sua intenção para o filme era retirar as legendas, pois a experiência cinematográfica falaria por si só. A ideia não se concretizou, mas algumas cenas não possuem legenda). Contudo, a trama acaba se perdendo devido a decisões criativas, narrativas e técnicas bem questionáveis. Sem mais delongas, passemos à crítica.


O longa conta as últimas doze horas de vida de Jesus. Inicia com a traição de Judas, passa pelo julgamento de Pilatos, pela via-crúcis de Jesus carregando a cruz do Pretório até o Calvário, sua crucificação e morte, com inserts de flashbacks de ensinamentos e momentos de sua vida. Esses flashbacks são justamente os melhores momentos do filme, nos quais podemos ver não só os ensinamentos de Jesus, mas também alguns momentos bem humanos. Essas transições acontecem de formas interessantes, sempre com Jesus vendo algo que o remete a algum momento de sua vida. Destaque para o primeiro de todos, em que o vemos exercendo seu ofício de carpinteiro, montando uma mesa mais elevada, enquanto Maria, sua mãe, o chama para almoçar. É um momento descontraído e bem-humorado, que, ao retornar ao presente, nos faz sentir a tensão dos futuros acontecimentos, sendo um dos momentos mais emotivos do filme. Porém, parece que as qualidades se encerram por aí. Muito do que vemos depois no filme são delírios de uma tentativa do diretor e corroteirista de criar momentos simbolicamente potentes e marcantes, que acabam por se tornar caricaturas exageradas com uma falsa profundidade.

Cena de "A Paixão de Cristo"- Distribuição/ 20th Century Fox Brasil
Cena de "A Paixão de Cristo"- Distribuição/ 20th Century Fox Brasil

Antes de entrarmos propriamente nesses quesitos negativos, vale fazer um parêntese com uma rápida explicação sobre um termo: gore. O termo diz respeito a representações de violência explícita, incluindo derramamento de sangue, mutilações e cenas visualmente impactantes. Essa expressão não se limita apenas ao cinema, sendo usada também em jogos, livros e outras formas de mídia que têm como objetivo provocar uma reação intensa no público. Além disso, gore pode se referir tanto à estética visual quanto ao uso de elementos extremos e cruéis. Embora seja mais comum no gênero de terror, produções de ação também podem fazer uso desse recurso.


Voltando, um dos fatores que mais chamou a atenção do público para esse filme foi o uso da violência extrema, e a notícia de que, justamente por causa dessa violência, algumas pessoas desmaiaram em sessões do filme. O uso da violência e do gore como artifício narrativo é interessante se for feito de forma inteligente. A questão é que grande parte do filme se baseia nisso, o que acaba se tornando um fator negativo diante da ideia de Mel Gibson para o filme, que não era sobre o sofrimento físico pelo qual Jesus passou, mas sim sobre como sua morte era necessária para salvar a humanidade, uma das crenças centrais do cristianismo. Isso é representado no filme à medida que vemos pessoas humilhando e zombando de Jesus, e outras omitindo-se, como Pedro e Pilatos. Boas ideias, mas que se perdem diante do impacto que o gore causa.


Além disso, vários personagens do filme são mal utilizados. Judas e seu tormento diante da traição são resolvidos em meia hora de produção. Maria é escanteada do longa, aparecendo apenas chorando e sofrendo, desperdiçando ótimas ideias, como o forte laço e ligação dela com seu filho, representados simplesmente em uma cena: Maria agachando-se no chão, logo acima do lugar em que Jesus está preso. Fora os outros discípulos, como Pedro e João, que pouco aparecem. Seu maior desenvolvimento narrativo é, sim, importante. Por mais que seja de grande conhecimento, principalmente dos católicos, quem são cada um desses personagens e sua importância bíblica, aqui eles funcionam como mera figuração. E se estamos falando de uma pessoa que foi acusada e morta por ser um líder, é importante que o impacto que ela causou em seus seguidores seja demonstrado.


Sim, não há como abordar tudo, mas mais poderia ter sido feito se não se perdesse tempo mostrando Jesus caindo ao longo do caminho várias vezes, ainda por cima utilizando slow motion para criar uma sensação de grande impacto. Isso torna o ritmo do filme lento na sua metade final. Gibson também apela para um maniqueísmo gratuito, em que pouco se diz sobre o motivo de tanto ódio contra Jesus, e aqueles contrários a ele se mostram como sádicos que se deliciam fisicamente (lambendo os lábios) com o sangue derramado. Sem contar a presença do espírito maligno durante toda a projeção, que só serve para causar um certo impacto visual e uma sensação de medo que, sinceramente, cai mais no cômico exagerado do que em qualquer outra coisa. Sendo assim, o real peso das atuações recai apenas sobre Jim Caviezel, que entrega uma boa performance diante daquilo que lhe é proposto.


A Paixão de Cristo
Cena de "A Paixão de Cristo"- Distribuição/ 20th Century Fox Brasil

Falando em decisões estéticas e técnicas, vamos à fotografia do filme. Existem três tons dominantes: azul, vermelho e amarelo. O azul no início do filme cria uma áurea mais sobrenatural diante dos acontecimentos daquela noite; o vermelho demonstra a violência; e o amarelo simboliza a luz da futura ressurreição de Cristo. A questão aqui pode ser uma opinião pessoal e um cansaço com a estética visual do início dos anos 2000, recheada de tons quentes em contraste com tons pastéis e luzes artificiais que tornam tudo muito plastificado e irreal.


Em suma, o longa possui boas ideias, mas que se perdem na maneira como são executadas, caindo em uma violência gráfica e pretensos simbolismos que fazem com que o real sentido do filme se perca. Uma pena. Segundo uma fala do próprio filme sobre o motivo das acusações contra Jesus: “Ele seduziu o povo ensinando doutrinas ofensivas e inaceitáveis”, uma falácia para justificar o fato de que Jesus pensava diferente e foi perseguido por isso. É válido ressaltar a inversão de papéis dos seguidores extremistas de Cristo que não entenderam sua mensagem de amor e paz e hoje perseguem aqueles que não seguem seus ditos ideais. Talvez o filme caia nessa visão que prioriza a violência e não os ensinamentos justamente porque Mel Gibson não os compreendeu.


P.S.: Recentemente, foi anunciado que A Paixão de Cristo terá uma continuação intitulada A Ressurreição de Cristo. A sequência contará com o retorno de Gibson na direção e de Jim Caviezel como Jesus. A estreia está prevista para 2026. É... Vamos aguardar para ver o que Mel Gibson vai aprontar desta vez.


Para quem só se importa com números:

Nota - 4/10.


Ficha técnica:

Título original:The Passion of the Christ

País de origem: Estados Unidos

Roteiro: Benedict Fitzgerald e Mel Gibson

Direção: Mel Gibson

Classificação: 14 anos

Duração: 127minutos


Elenco:

Jim Caviezel como Jesus Cristo

Maia Morgenstern como Maria

Monica Bellucci como Maria Madalena

Hristo Jivkov como Apóstolo João

Rosalinda Celentano como satanás

Pietro Sarubbi como Barrabás

Hristo Shopov como Pôncio Pilatos

Luca Lionello como Judas

Mattia Sbragia como Caifás

Toni Bertorelli como Anás

Sergio Rubini como Dimas

Francesco De Vito como Apóstolo Pedro

Luca De Dominicis como Herodes

Jarreth Merz como Simão Cireneu

2 Comments


danbrodrigues
Apr 19

Muito bom o texto! E atual apesar dos 21 anos.

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desenhandorecordat
desenhandorecordat
há 6 dias
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Que bom que gostou da nossa análise! Agora, vamos ver como vai ser a continuação...

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