Quadrinhos na Educação parte I
- Iuri Biagioni Rodrigues
- 10 de mar.
- 11 min de leitura
Atualizado: 11 de mar.
Caso bem trabalhadas em sala de aula, as histórias em quadrinhos podem trazer ótimos resultados pedagógicos!
Por: Iuri Biagioni Rodrigues

A partir deste texto, inicia-se uma nova série no Desenhando Recordatórios, focada na relação das histórias em quadrinhos com diferentes áreas do conhecimento e diversas manifestações artísticas. Nesta primeira parte, vamos conhecer um pouco mais sobre quadrinhos e educação!
Introdução
Atualmente, é muito comum encontrar quadrinhos e seus personagens em livros didáticos, apostilas, atividades, provas, vestibulares, no Enem e nas bibliotecas escolares. Contudo, não muito tempo atrás, a situação era bem diferente. As HQs eram alvo de muito preconceito e desprezadas por docentes, equipes gestoras e pelas famílias.
No passado, o uso dos quadrinhos na sala de aula era inadmissível. Isso ocorria porque as HQs eram vistas pelos educadores como leituras voltadas apenas ao lazer e ao entretenimento e, consequentemente, consideradas superficiais e sem valor para o aprendizado dos estudantes. Além disso, as histórias em quadrinhos eram acusadas de provocar "preguiça mental" nos estudantes e de afastá-los da chamada leitura de verdade. Podemos perceber que esses discursos careciam de embasamento teórico e tinham origem no desconhecimento sobre a nona arte.
As famílias dos alunos também não valorizavam as histórias em quadrinhos e, muitas vezes, as consideravam como culpadas pelo fracasso escolar das crianças e dos jovens, bem como pelos distúrbios de comportamento apresentados por eles em casa e na escola.
Vale ressaltar que, embora ainda exista preconceito em relação ao uso dos quadrinhos nas escolas, ele é muito menor do que antes. Além disso, temos muitos trabalhos científicos na área que ajudam a combater essa visão. Aos poucos, os jogos de videogame e celular ocuparam o lugar dos quadrinhos como os principais alvos dos ataques.
Entrada das histórias em quadrinhos nas escolas
A situação dos quadrinhos na educação começou a mudar a partir do final do século XX, quando eles começaram a ser aceitos e incorporados ao ambiente escolar. Com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1996, teve início um processo mudança, pois a legislação ressaltava a necessidade do uso de outras linguagens e manifestações artísticas nos ensinos fundamental e médio. Isso contribuiu para a entrada dos quadrinhos no contexto educacional.
A oficialização das HQs como recurso pedagógico ocorreu com a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) em 1997. O documento previa a utilização da linguagem dos quadrinhos nas escolas. Outra medida importante foi a inclusão de revistas em quadrinhos no Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) a partir de 2006, quando o governo passou a distribuí-las para as escolas junto com os livros. Num primeiro momento,os quadrinhos eram destinados apenas ao Ensino Fundamental, mas, em 2009, passaram a ser distribuídos também para o Ensino Médio.
A distribuição do PNBE foi encerrada em 2014, mas o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) englobou o envio de HQs para as escolas brasileiras.
Atualmente, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) também destaca a importância e a necessidade do uso de diversas linguagens, fontes e artes no processo de ensino e aprendizagem das diferentes disciplinas, embora não detalhe especificamente sobre a utilização de quadrinhos.
Toda essa trajetória pode ser resumida em três fases elaboradas pelo professor e pesquisador Waldomiro Vergueiro. Vejamos cada uma delas:
1) Rejeição: representa o momento em que os quadrinhos não eram tolerados na sala de aula. Nesta época, professores desdenhavam e não falavam desta mídia e os estudantes que levassem suas HQs para a escola eram repreendidos, podendo ser chamados pela diretoria e ter os pais convocados para represálias devido à má conduta.
2) Infiltração: nesta fase, uma nova geração de docentes com mente mais aberta começa a utilizar os quadrinhos em suas aulas, reconhecendo a linguagem das histórias e suas potencialidades pedagógicas, essas pessoas docentes enfrentaram uma prática pedagógica ultrapassada e autoritária. Este trabalho pioneiro criou raízes, se espalhou e mostrou para autoridades que as HQs podem ser objetos de aprendizado.
3) Inclusão: é o período em que vivemos hoje. Esta fase tem início com a reformulação da estrutura da legislação educacional brasileira. Como foi citado anteriormente, este período engloba a elaboração da LDB, assim como a criação de programas e documentos como os PCNs, o PNBE, o PNLD e a BNCC. Com essas iniciativas, os quadrinhos entraram nas escolas para ficar!
Motivos que fazem os quadrinhos serem positivos no processo de ensino aprendizagem
Existem vários motivos que demonstram a importância dos quadrinhos como instrumento pedagógico em diversas disciplinas em vários anos do período escolar. Vejamos alguns deles.
Os estudantes querem ler e se interessam por quadrinhos;
Palavras e imagens, juntas, ensinam de forma mais eficiente;
Existe um alto nível de informação e diversidade de temas e assuntos nas HQs;
As possibilidades de comunicação são enriquecidas pela familiaridade que alguns estudantes tem com os quadrinhos;
As histórias em quadrinhos influenciam no hábito de leitura;
As HQs enriquecem o vocabulário dos educandos, fortalecem a imaginação e o pensamento lógico;
Quadrinhos têm um caráter globalizador;
Quadrinhos podem ser utilizados em qualquer nível escolar e com qualquer tema e disciplina;
As HQs são fáceis de serem encontradas, principalmente na atualidade, com uma grande variedade de quadrinhos digitais;
As histórias em quadrinhos deixam o processo de ensino e aprendizagem mais dinâmico e divertido tanto para os alunos quanto para os professores;
Aulas que fogem do tradicional tendem a despertar mais interesse nos educandos.
O que as pessoas docentes precisam saber para usar quadrinhos em suas aulas
Nas palavras de Sonia Luyten, professora e pioneira na pesquisa acadêmica sobre quadrinhos: "o primeiro passo para um professor usar os quadrinhos em sala de aula é não ter medo e começar a se familiarizar com sua linguagem." (Texto 3 em quadrinhos na sala de aula / Salto para o Futuro).
A partir dessa citação, é importante lembrar que as histórias em quadrinhos constituem uma linguagem autônoma, com características próprias. As HQs exigem habilidades de leitura bem específicas, que precisam ser adquiridas pelos profissionais da educação que pretendem utilizá-las em suas aulas. Dessa forma, é essencial conhecer os tipos e gêneros de quadrinhos, estrutura narrativa, relação entre a linguagem verbal e não verbal nos quadrinhos, os formatos e estilos das vinhetas, os diferentes tipos de balões, as onomatopeias, os ângulos de vista e enquadramentos, entre outros aspectos. Em resumo, é preciso estar familiarizado com as particularidades da linguagem dos quadrinhos, e a melhor maneira para que isso ocorra é lendo quadrinhos. Os professores precisam se habituar a ler HQs antes de incorporá-las à prática docente
Outro aspecto a ser considerado é o público alvo. Alguns quadrinhos são mais adequados para o Ensino Fundamental I, outros para o Ensino Fundamental II e outros para o Ensino Médio ou para a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Algumas obras podem ser trabalhadas em diferentes níveis escolares, mas com enfoques e estratégias distintas. Cabe ao professor definir a melhor abordagem. Por isso, é fundamental conhecer a obra antes de utilizá-la em sala de aula. Quando um professor cria o hábito de ler quadrinhos de gêneros variados, ele certamente começa a pensar em formas de aplicá-los em suas aulas e em quais séries funcionarão melhor. De acordo com César Lotufo e André Luís Soares:
"Os quadrinhos podem ser utilizados em qualquer nível escolar e com qualquer tema não existe qualquer barreira para o aproveitamento das histórias em quadrinhos nos anos escolares iniciais e tampouco para sua utilização em séries mais avançadas, mesmo em nível universitário. A grande variedade de títulos, temas e histórias existente permite que qualquer professor possa identificar materiais apropriados para sua classe de alunos, seja de qualquer faixa etária, seja qual for o assunto que se deseje desenvolver com eles." (A eterna luta do bem contra o mal: os quadrinhos pela educação parte do livro Quadrinhos e Transdisciplinaridade, organizado por Nataniel dos Santos Gomes e publicado pela editora Appris).
Ao trabalhar com quadrinhos, é importante considerar suas três facetas: quadrinhos como forma de linguagem, como produto cultural e como expressão artística. A primeira diz respeito às características mencionadas no primeiro parágrafo deste tópico. A segunda destaca que as HQs funcionam como janelas e/ou espelhos da realidade, retratando diversas situações do mundo real. Além disso, elas são produtos do tempo e do local em que foram criadas, sendo influenciadas por fatores políticos, sociais e culturais da época, da região,do país, da empresa ou mercado editorial em que foram produzidas. A visão de mundo dos autores e o contexto de mercado também precisam ser levados em conta. Por fim, a terceira faceta nos lembra que possuem grande riqueza devido à imbricação entre texto e imagem. Esse aspecto não apenas enriquece a leitura, mas também gera significações simbólicas, evidenciando que as HQs representam uma leitura do mundo.
Concluindo, embora o uso das histórias em quadrinhos possa trazer resultados positivos para o ensino, sua utilização deve ser feita de maneira bem planejada e com parcimônia. As HQs devem ser mais um recurso pedagógico adotado pelo docente e revezado com outros recursos e linguagens como música, cinema, literatura, entre outros, garantindo diversidade e riqueza no ensino.
Sugestões de como usar os quadrinhos em sala de aula
Existem várias maneiras e possibilidades de se utilizar os quadrinhos no ambiente escolar. Vejamos algumas delas de maneira resumida:
A própria linguagem dos quadrinhos pode ser trabalhada. Aqui, trata-se de uma alfabetização na linguagem das HQs, pois os alunos vão aprender a ler imagem e o texto de forma simultânea. O momento ideal para iniciar esse trabalho é na Educação Infantil, mesmo antes de as crianças serem alfabetizadas. Nessa fase, mais adequado é usar tiras sem balões e recordatórios, permitindo que as crianças tenham contato com imagens em sequências e aprendam a preencher as lacunas existentes entre um quadro e outro. Nas séries seguintes, o trabalho deve ser aprofundado para que,9h ao final do Ensino Médio, os adolescentes estejam completamente familiarizados com a gramática das histórias em quadrinhos.
No Ensino Fundamental e no Ensino Médio, os quadrinhos podem ser utilizados para introduzir determinado assunto que será trabalhado em sala;
Após encerrar alguma matéria, o professor pode utilizar alguma HQ relacionada ao que foi trabalhado em sala para revisar e perceber se os estudantes sabem identificar como o tema das aulas é representado na obra utilizada;
Algumas histórias e personagens podem servir de exemplos para facilitar no entendimento dos educandos ou para deixar as atividades mais atrativas.
Tiras, charges e cartuns podem ser utilizadas em atividades e avaliações para analisar a interpretação dos alunos;
Professores podem escanear as HQs e remover seus balões e recordatórios com a finalidade de ver como os estudantes os preencheriam, criando suas histórias com base apenas nos desenhos e na estrutura de páginas do material original;
Atividades como clubes de leitura e debates podem ser desenvolvidas;
Docentes podem e devem estimular a produção de HQs por parte de seus alunos, pois esta tarefa incentiva a pesquisa, fortalece a imaginação, a criatividade, o trabalho em equipe, a interdisciplinaridade, aproximando os educandos do seu objeto de estudo.
Obs 1: A leitura pode ser realizada em sala das seguintes formas:
com cada estudante fazendo um personagem como se fosse um teatro (caso tenham vários exemplares);
leitura individual ou com a projeção da obra;
No caso das webcomics (incluindo as HQs feitas para redes sociais), cada estudante pode acessar pelo seu próprio celular. (Mesmo com a proibição desses dispositivos móveis, acredito e defendo que eles podem ser utilizados para fins pedagógicos)
Outra situação interessante é a criação e utilização de gibitecas escolares. Professores e gestores podem criar espaços voltados para leitura de HQs, incentivando a comunidade escolar a fazer doações desses materiais. Esses espaços podem servir como locais de lazer, de interação e aprendizado. Professores não devem impor o que deve ser lido, mas deixar os educandos escolherem o que os agrada mais e, aos poucos,eles buscarão conhecer novos títulos.
Caso o docente leia quadrinhos juntamente com os alunos, os resultados serão melhores, pois eles se sentirão inspirados pelo professor, tendo mais motivação. Depois, tudo que foi lido pode ser trabalhado em atividades de uma matéria e/ou de maneira interdisciplinar e com a criação de clubes de leitura, incentivando assim o hábito de ler.
Exemplos de atividades





Dicas de leitura
Se você é uma pessoa docente que pretende adotar as HQs em seu dia de trabalho ou se aprimorar nesse quesito, confira algumas dicas de leitura:
Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula (editora Contexto) - Organizado por Waldomiro Vergueiro e Angela Rama - Este livro traz capítulos com uma breve história das HQs, explicações sobre a linguagem dos quadrinhos e seus elementos e como utilizar as histórias em quadrinhos nas aulas de Língua Portuguesa, História, Geografia e Artes.
Quadrinhos na educação: Da Rejeição à Prática (editora Contexto) - organizado por Waldomiro Vergueiro e Paulo Ramos - Este livro traz capítulos com um histórico da entrada das HQs no ensino e como trabalhar os diferentes gêneros e estilos de quadrinhos em sala de aula.
História em quadrinhos: um recurso de aprendizagem (Salto para o Futuro/TV Escola) - organizado por Rosa Helena Mendonça com consultoria de Sonia Maria Bibe Luyten - Acesse clicando aqui- Este material traz diversas informações sobre quadrinhos na educação e sugestões de atividades.
As histórias em quadrinhos e a escola: práticas que ultrapassam fronteiras. (editora da Aspas) - de Natania Aparecida da Silva Nogueira - Neste livro, Natania Nogueira traz um pouco da sua experiência de vários anos utilizando quadrinhos em sala e aula. "A obra procura trazer aos profissionais do ensino elementos que lhes permitam trabalhar com quadrinhos de forma simples e eficiente. Há exemplos de trabalhos bem-sucedidos que podem ser reproduzidos ou adaptados às necessidades da escola e da disciplina" (trecho da sinopse)
Histórias em Quadrinhos e Práticas Educativas. Os Gibis Estão na Escola, e Agora? (editora Criativo) - organizado por Elydio dos Santos Neto e Marta Regina Paulo da Silva - este livro traz diversos textos sobre vários assuntos ligados ao uso dos quadrinhos na Educação como formação de leitores, importância das gibitecas, possibilidades de uso no ensino, formação de educadores e educandos, estereótipos étnico/raciais contidos nas HQs, entre outras temáticas
Professores protagonistas: os quadrinhos em sala de aula na visão dos docentes (editora Marsupial) - de Lucio Luiz - o livro "estuda a forma como as pesquisas sobre quadrinhos geralmente posicionam o professor como alguém que já possui uma predisposição para o uso dos quadrinhos, não havendo nenhum questionamento acerca do real interesse do docente ou sequer se ele considera os quadrinhos como uma ferramenta realmente importante ou pertinente. Diante disso, esta pesquisa investiga as representações sociais de professores de Educação Básica quanto a sua prática docente na utilização das histórias em quadrinhos em sala de aula." (sinopse)
Do lazer ao fazer: as histórias em quadrinhos na escola (editora da Aspas) - organizado por Maiara Alvim de Almeida, Nataniel dos Santos Gomes e Natania Aparecida da Silva Nogueira - Este livro traz textos de vários autores/pesquisadores, voltados a professores de todos os anos da educação básica, com o objetivo de auxiliá-los em sua prática diária, oferecendo recursos teóricos e práticos. O livro conta com 13 capítulos, abordando as áreas de Matemática, Ensino Religioso, Sociologia, acessibilidade, educomunicação, entre outras. Acesse o livro clicando aqui.
Quadrinho & Educação (vários volumes) (editora Quadriculando) - Organização de Thiago Modenesi e Amaro Xavier Braga Jr - Os livros desta coleção reúnem diversos textos e pesquisas essenciais sobre a articulação da educação com as histórias em quadrinhos. Até o momento, são 8 volumes publicados.

Na parte II, vamos ver como os quadrinhos podem ser utilizados em disciplinas específicas! Até lá.
Texto produzido com base nos livros: Histórias em quadrinhos e educação princípios gerais e práticas educativas de Natania Nogueira, Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula (Org. Waldomiro Vergueiro e Angela Rama) e Quadrinhos na educação: Da Rejeição à Prática (Org.Waldomiro Vergueiro e Paulo Ramos) - além de materiais citados ao longo do texto