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Crítica: Persépolis

Atualizado: 18 de abr. de 2023

Oriente tocando o Ocidente em um belíssimo quadrinho autobiográfico

Por: Iuri Biagioni Rodrigues

Persépolis é a autobiografia em quadrinhos da iraniana Marjane Ebihamis que utiliza o nome artístico de Marjane Satrapi (o termo Satrapi, vem de Satrapia, províncias do antigo Império Persa). Com este quadrinho, Marjane tornou-se a primeira mulher nascida no Irã a publicar uma história em quadrinhos.


O título Persépolis é uma referência à cidade de mesmo nome que era uma importante capital do antigo e poderoso Império Persa. Originalmente, a HQ saiu na França em quatro partes publicadas entre 2000 e 2003 pela editora L'Association. No Brasil, a obra foi lançada pela editora Companhia das Letras através do selo Quadrinhos na Cia. , primeiramente, de maneira separada e depois em volume único. A tradução é de Paulo Werneck.


A edição tem uma introdução do quadrinista francês David Beauchard que faz um resumo da história do Irã desde os tempos da Pérsia até o ano de 1979, o ano da Revolução Iraniana. Este elemento é crucial para a história, pois a vida da autora e dos iranianos como um todo (principalmente das mulheres) mudou bastante após estes eventos.


Vejamos resumidamente o que aconteceu em 1979: Em janeiro, uma revolução formada por socialistas, religiosos islâmicos e liberais fez com que Mohammad Reza Pahlevi, o Xá, título dos monarcas da Pérsia, abandonasse o país. As causas do movimento foram: descontentamento com o governo do Xá, interferência de potências ocidentais (Reino Unido e EUA) no país, rejeição dos valores ocidentais que estavam penetrando no Irã, injustiça social e repressão política e motivos religiosos. Como resultado, o Irã deixou de ser uma monarquia autocrática e, através de um plebiscito de resultado duvidoso, passou a ser uma República Islâmica Teocrática comandada por Ayatollah Ruhollah Khomeini. A partir daí, com regime sectarista Xiita no poder, as mulheres foram obrigadas a usar o véu, surgem salas de aulas separadas para meninos e meninas, aparecem os conflitos com a tradição cultural persa, os socialistas, comunistas e qualquer pessoa que se opusesse ao regime foram perseguidos e mortos. Neste ano, a quadrinista tinha 10 anos de idade.


O momento em que o uso do véu passou a ser obrigatório.
Marjane recebeu uma educação que combinava a tradição cultural dos persas com valores ocidentais e ideias políticos de esquerda por parte de sua família.

Assim, Persépolis conta a história de sua autora que cresceu nesse contexto histórico. O quadrinho mostra elementos da vida de Marjane desde sua infância até o início de sua vida adulta. Acontecimentos históricos como a Revolução Iraniana (já citada no parágrafo anterior), Guerra do Irã contra o Iraque e repressão política também estão presentes. Além disso, vemos que Marjane aborda temas como islamismo, cultura persa, socialismo, comunismo, feminismo, imperialismo e a relação entre Ocidente e Oriente ao longo de toda a obra. Vale destacar que a autora não critica a religião islâmica, ela critica os usos políticos que fazem dela.


Na primeira parte, que na minha opinião, é a melhor parte da HQ, a quadrinista nos mostra como ela absorveu todas essas transformações e acontecimentos quando criança, como a mídia e os professores abordaram tais temas, a crueldade e o autoritarismo do governo e o fanatismo religioso. Na segunda parte, vemos que os pais de Marjane a enviam para viver em Viena (Áustria) quando ela tinha 14 anos. Lá, ela estuda no Liceu Francês, tem um contato mais forte com elementos da cultura ocidental, conhece as diferentes vertentes do pensamento marxista, as ideias anarquistas e passa por problemas pessoais. Enfim, é o momento em que a jovem torna-se uma mulher adulta. No final, vemos o retorno da autora ao seu país natal e os problemas que ela enfrenta por lá.

Marji passando pela puberdade durante os anos que passou na Europa.

Através deste quadrinho, podemos aprender bastante coisa sobre a história e cultura do Irã. Satrapi, através de um olhar muito intimista, mostra como é vida das pessoas num país que conhecemos tão pouco e que é vítima de preconceitos e visões estereotipadas por parte do Ocidente. Sobre essa visão negativa e cheia de estereótipos que temos dos países orientais, Edward Said, crítico literário e um dos fundadores dos estudos pós-coloniais, em seu clássico livro Orientalismo – O Oriente como invenção do Ocidente, mostra que o Ocidente criou o Oriente, mas não foi uma simples invenção ou um conjunto de mentiras. Na verdade, foi uma criação complexa, construída historicamente, culturalmente e socialmente ao longo do tempo. Said evidencia a relação de poder e de dominação existente entre Ocidente e Oriente. Desta maneira, o autor destaca que essa dominação expressou-se através de elementos culturais (como literatura e cinema) e científicos (teorias pseudocientíficas como o darwinismo social por exemplo).


Persépolis foi escrito e desenhado por uma iraniana que nasceu e viveu parte de sua vida no Irã, mas que também morou no Ocidente (parte da adolescência como vemos no quadrinho e há alguns anos, ela mora na França). Portanto temos um retrato bem mais interessante e completo do Oriente do que outras obras que estão na ótica apresentada no livro de Said. Persépolis tem uma importância cultural gigantesca, porque rompe com visões preconceituosas, mostra de maneira bem clara as diferenças entre Ocidente e Oriente e, também, as semelhanças e abriu as portas para muitas mulheres contarem as suas histórias através da linguagem dos quadrinhos.


Os desenhos e a disposição de quadros desta HQ são bem simples, porém são muito expressivos e funcionam perfeitamente com a proposta narrativa. Aliás, o roteiro de Marjane é muito bem escrito, é simples e direto, tanto que Persépolis não é uma leitura cansativa mesmo tendo muito texto e mais de 300 páginas. Satrapi possui uma incrível capacidade de contar histórias e uma grande habilidade em trabalhar humor e drama. Durante a leitura, nos sentimos como verdadeiros confidentes/cúmplices de Marji.


As medidas repressivas por parte do regime sectarista islâmico, sobretudo contra as mulheres, é um dos focos de Persépolis.

Em suma, Persépolis é uma obra-prima dos quadrinhos que abre a nossa mente para conhecer mais sobre a história, cultura e modo de vida das pessoas do Irã, principalmente das mulheres e a romper com a superficialidade com que conhecemos os países do Oriente. É uma excelente recomendação de leitura tanto para quem gosta de quadrinhos quanto para quem não gosta.


Para quem só se importa com números:

Nota = 10/10


Dados da HQ:

Roteiro: Marjane Satrapi

Arte: Marjane Satrapi

Editora original: L'Association

Editora no Brasil: Companhia das Letras (selo Quadrinhos na Cia.)

Tradução: Paulo Werneck

Revisão: Carmen S. da Costa e Laura Victal

Número de páginas: 352


Prêmios vencidos por Persépolis:

Festival Internacional de quadrinhos de Angoulême (2001): Prêmio Revelação - Persépolis 1

Festival Internacional de quadrinhos de Angoulême (2002): Prêmio de Melhor Roteiro - Persépolis 2

Festival Internacional de quadrinhos de Angoulême (2002): Prêmio de melhor cenário - Persépolis 2

Prêmio Max & Moritz (2004): Melhor Álbum Estrangeiro

Prêmio Harvey (2004): Melhor edição americana de material estrangeiro

Prêmio Urhunden (2005): Melhor Álbum Estrangeiro - Persépolis 1

Prêmio Peter Pan (2005)

Prêmio Sproing (2005): Melhor álbum traduzido

Prêmio Ignatz (2005): Graphic Novel excepcional





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