CrĆtica: PersĆ©polis
- Iuri Biagioni Rodrigues
- 17 de jan. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 25 de nov. de 2024
Oriente tocando o Ocidente em um belĆssimo quadrinho autobiogrĆ”fico
Por: Iuri Biagioni Rodrigues

PersĆ©polis Ć© a autobiografia em quadrinhos da iraniana Marjane Ebihamis que utiliza o nome artĆstico de Marjane Satrapi (o termo Satrapi, vem de Satrapia, provĆncias do antigo ImpĆ©rio Persa). Com este quadrinho, Marjane tornou-se a primeira mulher nascida no IrĆ£ a publicar uma história em quadrinhos.
O tĆtulo PersĆ©polis Ć© uma referĆŖncia Ć cidade de mesmo nome que era uma importante capital do antigo e poderoso ImpĆ©rio Persa. Originalmente, a HQ saiu na FranƧa em quatro partes publicadas entre 2000 e 2003 pela editora L'Association. No Brasil, a obra foi lanƧada pela editora Companhia das Letras atravĆ©s do selo Quadrinhos na Cia. , primeiramente, de maneira separada e depois em volume Ćŗnico. A tradução Ć© de Paulo Werneck.
A edição tem uma introdução do quadrinista francês David Beauchard que faz um resumo da história do Irã desde os tempos da Pérsia até o ano de 1979, o ano da Revolução Iraniana. Este elemento é crucial para a história, pois a vida da autora e dos iranianos como um todo (principalmente das mulheres) mudou bastante após estes eventos.
Vejamos resumidamente o que aconteceu em 1979: Em janeiro, uma revolução formada por socialistas, religiosos islĆ¢micos e liberais fez com que Mohammad Reza Pahlevi, o XĆ”, tĆtulo dos monarcas da PĆ©rsia, abandonasse o paĆs. As causas do movimento foram: descontentamento com o governo do XĆ”, interferĆŖncia de potĆŖncias ocidentais (Reino Unido e EUA) no paĆs, rejeição dos valores ocidentais que estavam penetrando no IrĆ£, injustiƧa social e repressĆ£o polĆtica e motivos religiosos. Como resultado, o IrĆ£ deixou de ser uma monarquia autocrĆ”tica e, atravĆ©s de um plebiscito de resultado duvidoso, passou a ser uma RepĆŗblica IslĆ¢mica TeocrĆ”tica comandada por Ayatollah Ruhollah Khomeini. A partir daĆ, com regime sectarista Xiita no poder, as mulheres foram obrigadas a usar o vĆ©u, surgem salas de aulas separadas para meninos e meninas, aparecem os conflitos com a tradição cultural persa, os socialistas, comunistas e qualquer pessoa que se opusesse ao regime foram perseguidos e mortos. Neste ano, a quadrinista tinha 10 anos de idade.


Assim, PersĆ©polis conta a história de sua autora que cresceu nesse contexto histórico. O quadrinho mostra elementos da vida de Marjane desde sua infĆ¢ncia atĆ© o inĆcio de sua vida adulta. Acontecimentos históricos como a Revolução Iraniana (jĆ” citada no parĆ”grafo anterior), Guerra do IrĆ£ contra o Iraque e repressĆ£o polĆtica tambĆ©m estĆ£o presentes. AlĆ©m disso, vemos que Marjane aborda temas como islamismo, cultura persa, socialismo, comunismo, feminismo, imperialismo e a relação entre Ocidente e Oriente ao longo de toda a obra. Vale destacar que a autora nĆ£o critica a religiĆ£o islĆ¢mica, ela critica os usos polĆticos que fazem dela.
Na primeira parte, que na minha opiniĆ£o, Ć© a melhor parte da HQ, a quadrinista nos mostra como ela absorveu todas essas transformaƧƵes e acontecimentos quando crianƧa, como a mĆdia e os professores abordaram tais temas, a crueldade e o autoritarismo do governo e o fanatismo religioso. Na segunda parte, vemos que os pais de Marjane a enviam para viver em Viena (Ćustria) quando ela tinha 14 anos. LĆ”, ela estuda no Liceu FrancĆŖs, tem um contato mais forte com elementos da cultura ocidental, conhece as diferentes vertentes do pensamento marxista, as ideias anarquistas e passa por problemas pessoais. Enfim, Ć© o momento em que a jovem torna-se uma mulher adulta. No final, vemos o retorno da autora ao seu paĆs natal e os problemas que ela enfrenta por lĆ”.

AtravĆ©s deste quadrinho, podemos aprender bastante coisa sobre a história e cultura do IrĆ£. Satrapi, atravĆ©s de um olhar muito intimista, mostra como Ć© vida das pessoas num paĆs que conhecemos tĆ£o pouco e que Ć© vĆtima de preconceitos e visƵes estereotipadas por parte do Ocidente. Sobre essa visĆ£o negativa e cheia de estereótipos que temos dos paĆses orientais, Edward Said, crĆtico literĆ”rio e um dos fundadores dos estudos pós-coloniais, em seu clĆ”ssico livro Orientalismo ā O Oriente como invenção do Ocidente, mostra que o Ocidente criou o Oriente, mas nĆ£o foi uma simples invenção ou um conjunto de mentiras. Na verdade, foi uma criação complexa, construĆda historicamente, culturalmente e socialmente ao longo do tempo. Said evidencia a relação de poder e de dominação existente entre Ocidente e Oriente. Desta maneira, o autor destaca que essa dominação expressou-se atravĆ©s de elementos culturais (como literatura e cinema) e cientĆficos (teorias pseudocientĆficas como o darwinismo social por exemplo).
Persépolis foi escrito e desenhado por uma iraniana que nasceu e viveu parte de sua vida no Irã, mas que também morou no Ocidente (parte da adolescência como vemos no quadrinho e hÔ alguns anos, ela mora na França). Portanto temos um retrato bem mais interessante e completo do Oriente do que outras obras que estão na ótica apresentada no livro de Said. Persépolis tem uma importância cultural gigantesca, porque rompe com visões preconceituosas, mostra de maneira bem clara as diferenças entre Ocidente e Oriente e, também, as semelhanças e abriu as portas para muitas mulheres contarem as suas histórias através da linguagem dos quadrinhos.
Os desenhos e a disposição de quadros desta HQ sĆ£o bem simples, porĆ©m sĆ£o muito expressivos e funcionam perfeitamente com a proposta narrativa. AliĆ”s, o roteiro de Marjane Ć© muito bem escrito, Ć© simples e direto, tanto que PersĆ©polis nĆ£o Ć© uma leitura cansativa mesmo tendo muito texto e mais de 300 pĆ”ginas. Satrapi possui uma incrĆvel capacidade de contar histórias e uma grande habilidade em trabalhar humor e drama. Durante a leitura, nos sentimos como verdadeiros confidentes/cĆŗmplices de Marji.

Em suma, PersĆ©polis Ć© uma obra-prima dos quadrinhos que abre a nossa mente para conhecer mais sobre a história, cultura e modo de vida das pessoas do IrĆ£, principalmente das mulheres e a romper com a superficialidade com que conhecemos os paĆses do Oriente. Ć uma excelente recomendação de leitura tanto para quem gosta de quadrinhos quanto para quem nĆ£o gosta.
Para quem só se importa com números:
Nota = 10/10
Dados da HQ:
Roteiro: Marjane Satrapi
Arte: Marjane Satrapi
Editora original: L'Association
Editora no Brasil: Companhia das Letras (selo Quadrinhos na Cia.)
Tradução: Paulo Werneck
Revisão: Carmen S. da Costa e Laura Victal
Número de pÔginas: 352
Prêmios vencidos por Persépolis:
Festival Internacional de quadrinhos de Angoulême (2001): Prêmio Revelação - Persépolis 1
Festival Internacional de quadrinhos de Angoulême (2002): Prêmio de Melhor Roteiro - Persépolis 2
Festival Internacional de quadrinhos de Angoulême (2002): Prêmio de melhor cenÔrio - Persépolis 2
PrĆŖmio Max & Moritz (2004): Melhor Ćlbum Estrangeiro
Prêmio Harvey (2004): Melhor edição americana de material estrangeiro
PrĆŖmio Urhunden (2005): Melhor Ćlbum Estrangeiro - PersĆ©polis 1
PrĆŖmio Peter Pan (2005)
Prêmio Sproing (2005): Melhor Ôlbum traduzido
PrĆŖmio Ignatz (2005): Graphic Novel excepcional