O Nazifascismo nas histórias do Quarto Mundo de Jack Kirby
- Iuri Biagioni Rodrigues
- 14 de jul.
- 7 min de leitura
Atualizado: 24 de jul.
Vamos conhecer um pouco da subtrama política das clássicas histórias do Quarto Mundo!
Por: Iuri Biagioni Rodrigues

Nos últimos anos, observamos o crescimento de movimentos de extrema direita com inspiração na doutrina nazifascista. Diante disso, refletir sobre o tema é de extrema importância. Uma boa maneira de fazê-lo é analisar e discutir sobre obras que tratam do assunto ou que contenham elementos relacionados a ele. As histórias em quadrinhos de Jack Kirby, que compõem o Quarto Mundo, possuem um grande potencial para essa análise.
Kirby criou o Quarto Mundo no início da década de 1970. Esse universo abrangia quatro revistas: Superman's Pal Jimmy Olsen (Jimmy Olsen, o amigo do Superman), The New Gods (Os Novos Deuses), The Forever People (O Povo da Eternidade) e Mister Miracle (Senhor Milagre). As HQs apresentavam o conflito entre os chamados Novos Deuses que viviam nos mundos de Nova Gênese e Apokolips. As histórias possuíam elementos de ficção científica e referências mitológicas. Além disso, é possível identificar um subtexto político no qual características da ideologia nazifascista aparecem nas situações que envolvem o vilão Darkseid e seus asseclas.
Nesse arco de histórias, o público acompanhou o conflito entre os mundos de Nova Gênese (um lugar de bem, paz, luz e progresso) e Apokolips (um lugar de mal, guerra, escuridão e escravidão), com heróis de Nova Gênese tentando impedir os planos do vilão Darkseid de encontrar a Equação Antivida, uma ferramenta que lhe permitiria controlar todas as formas de vida sencientes do universo.
Para protagonizar essa épica narrativa, Kirby criou diversos personagens que seguem relevantes no Universo DC até os dias de hoje, como Darkseid, Órion, Pai Celestial, Desaad, Kalibak, Vovó Bondade, Lightray, Senhor Milagre, Barda, Metron, entre outros. O famoso quadrinista também desenvolveu conceitos importantes como os tubos de explosão, caixas maternas e a já mencionada Equação Antivida.
É válido lembrar que a trama de um quadrinho está intimamente relacionada com as dinâmicas internas da indústria, com o contexto político, econômico, social, histórico, cultural e religioso no qual a indústria está inserida bem como a concepção de mundo e as vivências do artista que o produziu. Isso é evidente quando Kirby afirmou em uma entrevista para Leonard Pitts Jr. : “Os Novos Deuses entraram nos meus sentimentos sobre o mundo ao meu redor. Existe um elemento de verdade nisso.”
Sobre isso, também é importante citar que Jack Kirby era judeu e que ele foi convocado para servir o exército dos EUA na 2ª Guerra Mundial em 1943. Na Europa, ele conviveu de perto com horrores da guerra e sofreu um ferimento grave. Tudo isso, somado à sua origem judia, provavelmente fez com que Kirby criasse um sentimento de repulsa pelos regimes autoritários da Itália (fascismo) e Alemanha (nazismo).
De acordo com o pesquisador Jerry Boyd , Jack Kirby inspirou-se em Hitler e seu terceiro Reich para criar Darkseid e o planeta de Apokolips. Para o autor, assim como Hitler, Darkseid é cruel, manipulador, carismático e indiferente. Na primeira edição de Novos Deuses, Darkseid é descrito como o portador do holocausto e arauto do poder e da morte. Esses paralelos entre o maior vilão da DC, seu mundo e seus seguidores com o nazifascismo são evidentes.
Primeiramente, vamos destacar o culto à figura do líder, característica marcante do nazifascismo. Na Itália, Mussolini era chamado de Duce, enquanto na Alemanha, Hitler era conhecido como Führer. Ambos os governantes eram idolatrados, representados em imagens que transmitiam ideia de grandeza e saudados com expressões como Heil Hitler! (salve Hitler).

Em Apokolips, o culto à figura de Darkseid é profundamente enraizado. A primeira história dos Novos Deuses já nos apresenta a uma estátua do vilão existente lá, e em outras sequências ambientadas neste planeta, notamos imagens com o rosto de Darkseid e vemos seus aliados mais influentes incentivando a devoção à sua pessoa . É comum ver os soldados saudando-o com a expressão “grande Darkseid” e proferindo a frase “por Darkseid!” antes de entrar em combate. Assim, o personagem transmite respeito, temor e submissão, governando por meio do medo e do horror, de forma similar a Mussolini e, especialmente, Hitler.


Outra característica importante é que os governantes nazifascistas não atuaram sozinhos. Para manter-se no poder, Hitler e Mussolini contaram com o apoio de diversas lideranças de seus partidos e de vários setores da sociedade, em especial das elites. Similarmente, Darkseid, para manter seu domínio sobre Apokolips, espalhar medo, oprimir a população e conquistar mundos, conta com o apoio e lealdade de Desaad (torturador mestre), Vovó Bondade (diretora de “orfanatos”, escolas de caráter militar), Glorioso Godfrey (orador e manipulador de massas), Kalibak (guerreiro poderoso e seu filho) Kanto (assassino treinado), Virman Vundabar (soldado) Doutor Bedlan (cientista) e Mantis (soldado) que compõem a elite de Apokolips.
Para consolidar o controle da população e buscar a expansão territorial, o nazifascismo investiu em poderosas estruturas militares. Como exemplo disso, temos polícias secretas, grupos paramilitares e o exército. Na Itália, havia a Organização de Vigilância Repressão ao Antifascismo (OVRA) e os Camisas Negras. Na Alemanha, a GESTAPO, SA e SS. Em Apokolips, Darkseid possui grupos militares como seu exército de Parademônios, Assediadores, Justificadores, Força de Poderes Especiais, Fúrias, entre outros. O militarismo em Apokolips também é evidenciado através da indústria bélica, pois novas armas sempre são desenvolvidas ao longo das edições. Itália e Alemanha sob a liderança de Mussolini e Hitler investiram fortemente na indústria bélica.
A propaganda política era uma ferramenta fundamental para os regimes nazifascistas. Por meio dela, era possível controlar a população, reforçar aspectos positivos do governo, glorificar o governante e espalhar a doutrina do partido. Conforme destaca o professor e pesquisador Nildo Viana, para as lideranças fascistas não era preciso somente aceitar o fascismo, era preciso ser fascista. A manipulação das massas por meio da propaganda era essencial nesse sentido.
Esse raciocínio pode ser notado na edição de número 3 da revista do Povo da Eternidade. Na primeira página da revista lemos a seguinte frase de Adolf Hitler em um recordatório: “Eis a beleza do nosso movimento, em que todos os integrantes são iguais não só em ideias, mas até mesmo suas expressões faciais são quase idênticas”. Ao longo desta história, o Glorioso Godfrey atua como um fervoroso propagandista da Antivida, buscando expandir a influência de Darkseid na Terra e submeter a humanidade à sua vontade. Godfrey é um excelente orador e é muito persuasivo, deste modo ele convence e controla as pessoas com um capacete especial para que espalhem sua mensagem e ataquem aqueles que discordam dela. Logo, não basta apenas aceitar a Antivida e Darkseid, é preciso viver a Antivida e lutar por Darkseid.


Jerry Boyd compara as atitudes e estratégias do Glorioso Godfrey com Joseph Goebbels, ministro da propaganda da Alemanha Nazista, homem de confiança do Führer e uma pessoa muito importante na “lavagem cerebral” de alemães e austríacos. Goebbels era responsável pela organização de comícios do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, exposições de arte, exibição de filmes e se destacou pelos discursos que espalhavam a ideologia nazista para as massas. As semelhanças com as ações de Godfrey descritas acima são inegáveis. Outrossim, cabe destacar que Hitler possuía uma excelente capacidade de discursar e captar atenção e apoio de multidões.
Outras práticas comuns do nazifascismo que podem ser encontradas nas revistas do Quarto Mundo são a educação militar e os campos de concentração. A educação militar em Apokolips é exercida pela Vovó Bondade em seus orfanatos, onde prepara meninos e meninas para servirem e lutar por Darkseid. Já os campos de concentração são referenciados quando Desaad constrói um grande parque de diversões chamado Happyland. Lá, diversos humanos são aprisionados e obrigados a utilizar os brinquedos do local. Da mesma forma que os prisioneiros dos campos faziam trabalhos forçados.

Por fim, temos a Equação Antivida, objeto de cobiça de Darkseid, que segundo Grant Morrison, representa a “fórmula máxima de manipulação mental” (Superdeuses, p.148). Com ela, o vilão poderia controlar o pensamento de todos os seres sencientes do universo, eliminando assim o livre-arbítrio, qualquer forma de rebeldia e transformando todos em súditos obedientes, como escravos. A única vontade existente seria a de Darkseid que governaria o universo com uma nova ordem baseada no medo e na submissão.
Essa ideia converge com a citação de Hitler presente na terceira edição do Povo da Eternidade que foi mencionada anteriormente. Deste modo, é plausível interpretar a Equação Antivida como uma metáfora adotada por Kirby para referir-se ao totalitarismo nazifascista, onde a população é submetida a um controle mental sistemático por governantes inescrupulosos, perdendo sua autonomia e liberdade. ( Obs: o conceito de totalitarismo é alvo de debates e discussões no meio acadêmico. Aqui, o termo aparece apenas para enfatizar o autoritarismo nazifascista).
A saga Quarto Mundo é mais do que uma história de superaventura e ficção científica; é um testemunho da visão de mundo de seu autor, com destaque para sua percepção sobre regimes autoritários e a maneira como eles manipulam as pessoas. Jack Kirby é valorizado principalmente pelo aspecto artístico de sua obra. Deste modo, o lado político de seu trabalho acaba sendo ignorado em algumas situações, mas é preciso resgatá-lo e valorizá-lo!
Esse texto é um recorte do capítulo "A equação antivida é o nazifascismo: uma análise do Quarto Mundo de Jack Kirby" escrito por mim para o livro “Super-Heróis, Políticas e Identidades” da ASPAS. Você pode acessar o livro clicando aqui
Comentários